O Advento da República

Mas a hora era de ensinamentos, provações e humilhações. O Anjo Vermelho, que vinha batizar a República com o sangue dos marcados por Deus, já se fazia sentir. A arbitrariedade policial sob um regime de sítio, sob um silêncio impressionante, sob um pavor geral corria os morros, invadia as reuniões, penetrava casas de família, a buscar conspiradores. O pânico estabeleceu-se nas hostes espiríticas. Os "científicos", que se reuniam mais pelo espetáculo, fecharam as tendas. Os "místicos" continuaram a trabalhar mas escondidos como os primeiros cristãos. O Reformador aparecia com atraso, sem ousar ataques e teve que interromper, pela primeira vez, a publicação, em fins de 1891.
Os quatro inimigos do Espiritismo cantavam hinos de triunfo por todas as quebradas. O positivismo, arvorado em mentor da República, ditava leis e reformas sociais de valor. O materialismo, liberto o Estado da tutela da Igreja católica, embandeirara-se em arco pelas escolas, pelas academias, pelos tribunais, pelas repartições, pelas prefeituras, pelos hospitais, pelas sociedades científicas, pelos grêmios benemerentes, banindo de toda a parte à vassoura os vestígios de nossa velha civilização católica, até mesmo o símbolo do Crucificado.
O racionalismo campeava no Congresso, na Imprensa, no Exército vitorioso, no Governo e no meio da rua. O clero, se não estava contente com a situação, acendia contudo velas por ver que ao menos um dos seus adversários, o que era preciso "odiar por dever de consciência", já estava metido no Código Penal.
Mas para suavizar tantas vicissitudes, veio de Nápoles a notícia de que César Lombroso, Tamborini, Chiaia, Ascendi, Viziali... diante dos trabalhos de Eusapia Paladino, proclamavam a existência da Metapsíquica. No Brasil, principiou então um movimento metapsíquico.
O Espiritismo, nas rodas cultas, não era mais cuidado como filosofia ou religião, mas como ciência. O professor Érico Coelho, da Faculdade de Medicina, o professor Alexander, do Colégio Pedro II, o Dr. Wladimir Mota e outros homens de posição e cultura deram início às experiências.
O ano de 1892 entrou assim. A própria Federação, que ora pendia para o kardecismo, ora para o Espiritismo científico, resolveu definir-se por este último. A Fraternidade não se reuniu mais por falta de número. A Acadêmica se resumia em alguns caixões guardados num armazém. Não se falava mais do Centro. A União era apenas um título.
Bezerra de Menezes, que no curto espaço de ano e meio perdera três filhos, recolheu-se, não saindo senão para o Ismael. A República de um lado e a desambição das coisas materiais do outro levaram-no à pobreza e ao isolamento. 
Mantinha a secção dominical de O Paiz, escrevia artigos para o Reformador e dava a lume o interessante romance, de enredo em São Paulo, "Lázaro, o Leproso", mas não aparecia em público.
O ano terrível foi 1893. A Federação renegou abertamente o kardecismo.
Para ela, o Espiritismo era uma ciência. Caíra, enfim, nas mãos dos "científicos".
A Fraternidade, sua aliada, também se tornou "científica". Chegara a hora do professor T. Nas suas mãos hábeis estavam todos: Federação, União, Academia, Fraternidade e mais de vinte grupos filiados. Transformou a Fraternidade em Sociedade Psicológica Fraternidade, para a distinguir bem daquela que outrora pertencera aos "místicos". Todas as vozes kardecistas cessaram. O Anjo Vermelho entrou a dominar. Em setembro, nem Reformador, nem qualquer sociedade. Tudo fechado. Tudo mudo. Só Max, o incansável, escrevia. Foi à derradeira pena. Só em 25 de dezembro encerrou os "Estudos Filosóficos", no Jornal O Paiz, escrevendo tocante homenagem a Jesus. E assim findou o quarto período.
Desde o começo de 1894, três homens se haviam reunido para restaurar a Federação e reeditar o Reformador: Elias da Silva e Fernandes Figueira, fundadores, e Alfredo Pereira, o incansável e abnegado amigo da sociedade e do jornal. Restaurar somente? Dez anos de luta não encerravam ensinamentos aproveitáveis, num momento em que tudo se ia fazer de novo?
Segundo a crônica, entraram os três a "angariar meios materiais para a sustentação e ampliação do programa" e a recrutar velhos e novos elementos para uma fase nova. Para isso lançaram o Reformador, com a antedata de 1° de janeiro, e esboçaram um ambiente social, dentro do qual esperavam conseguir a desejada união da família espírita. Esse ambiente consistia num "meio termo" entre os "científicos" e os "místicos", ligados pela "tolerância", tendo por objetivo uma "fraternidade-força". Era, sem dúvida, uma ampliação do programa, que foi de início e durante o decênio 1883-93 preponderantemente "científico".
A presidência foi confiada a Dias da Cruz, espiritista puro, isto é, nem "científico" nem "místico". O novo rumo foi traçado no editorial intitulado "Sectarismo", que precisamos conhecer neste trecho: "O espírita está, pois, em seu verdadeiro posto quando se coloca entre o homem de ciência e o homem de fé, não possuindo as crendices de um, nem por igual às negações de outro. Não nos desviemos de nosso lugar. Postos entre a fé e a razão, evitemos os exageros do sectarismo, pois que ele é o verdadeiro inimigo". Este grifo é nosso e feito para salientar que, no programa "meio termo", deviam ser considerados inimigos do Espiritismo puro os "científicos" (psiquistas, ocultistas e kardecistas) e os "místicos" (rustanistas, swedemborgistas, teosofistas). Entre esses dois grupos sectários é que devia ficar o espírita puro. 
Erguida esta nova bandeira, o Reformador começou a convocar gente para o trabalho "por cessados os motivos do pânico" que a haviam emudecido e dispersado nos meses vermelhos de 1893 e, numa sexta-feira de maio, o salão da rua da Alfândega, 342, reabriu-se para a nova fase, com afluência animadora.
O trabalho fundamental da Federação era a propaganda do Espiritismo e o seu desideratum era o proselitismo. A aspiração dos seus diretores era aumentar quantitativamente o seu quadro social, o seu auditório, o número de seus leitores. Para estas finalidades usavam-se três instrumentos: o Reformador, que levava os resultados de experiências e elucubrações estrangeiras, com pouquíssima colaboração nacional; a reunião de sexta-feira, em que uma tese era posta em debate, usando da palavra quem quisesse externar seu ponto de vista, e a Assistência aos Necessitados, que socorria os pobres à moda vicentina. 
O Reformador tratava "indiferentemente", como era necessário num programa meio termo, de psiquismo, ocultismo, kardecismo, rustanismo, swedemborgismo, iluminismo, teosofismo, não se esquecendo, porém, de atacar quando e quanto podia o protestantismo e o catolicismo. A Federação abolira o ensino hebdomadário de O Livro dos Espíritos, que Bezerra de Menezes havia instituído para o povo em 1889, voltando ao sistema primitivo, que o Presidente Quadros inaugurara e os sucessores adotaram até 1888: discussão de teses espíritas. Mas, enquanto assim agiam a Federação e o Reformador, ia a Assistência, no silêncio e na penumbra, atendendo a mais de cem famílias pobres e dispensando a uma clientela avulsa e crescente o esforço diário de um grupo de homeopatas crentes e generosos. 
Este aspecto filantrópico da Assistência, que não tinha personalidade jurídica e vivia sob o mesmo teto da Federação, em prestava a esta enorme prestígio moral. O povo não sabia nem podia distinguir o que era propriamente desta — a propaganda acadêmica de sexta-feira e a literatura do Reformador — do que era particular e exclusivamente daquela: a caridade vicentina dos homens e dos Espíritos. E como é mais humano procurar quem nos console e nos ensine pelo sentimento, a quem nos force a pensar, a especular ou, numa só frase, aprender pelo raciocínio, o movimento da Assistência contrastava cada vez mais com a frequência diminuta das sessões de sexta-feira e com a procura exígua do Reformador. Nos dias de gala e de conferência anunciada, a Federação reunia um máximo de trinta ouvintes. Nas edições magnas, como a de 3 de outubro, o Reformador tirava dobrado duzentos exemplares para distribuição gratuita. Mas todos os dias úteis, fizesse sol ou chovesse, um sem número de pessoas num vai-e-vem contínuo dava à Assistência o testemunho de sua utilidade. Desta forma, a flor de sombra, que não tinha tribuna de proselitismo nem personalidade jurídica, começou a ofuscar pelo perfume e pelo mel a flor de retórica, que possuía um nome pomposo e um jornal com justas pretensões de primeiro.
Os responsáveis pelos destinos da Federação — Elias, Figueira, Arnaldo Pereira, Dias da Cruz, Carlos Cirne e alguns outros — perceberam o valor político da Assistência e cuidaram de tirar da sua providencial simbiose com a Federação todo o proveito possível.
A situação era esta: o fator primordial de prosperidade da Federação residia na Assistência; este instituto, ainda que sem personalidade jurídica, era autônomo e podia pelo seu desenvolvimento adquiri-la; era imprescindível, portanto, estabelecer entre ela e a Federação uma aliança indissolúvel. Esse trabalho estaria reservado à diretoria vindoura.
Dias da Cruz foi talvez o primeiro a compreender que precisava ceder a presidência a quem pudesse, de maneira insofismável e sob todos os pontos de vista, prestigiar ativamente a Assistência. Os frequentadores desta queriam, com toda razão, a homeopatia dos médiuns e não a homeopatia dos médicos e ele só conhecia e praticava a dos médicos e não lhe permitia o caráter diamantino qualquer transigência nesse terreno: a César o que é de César. O futuro presidente da Federação deveria ser um homem que não estivesse prejudicado pela profissão para o exercício do curandeirismo mediúnico, que já principiava a ser uma das forças da Assistência e teria de ser pouco tempo depois, sob a regência de Pedro Richard, a sua maior potência.
Além da aliança entre a Federação e a Assistência, que seria uma tarefa doméstica, intramuros, cumpria ainda à próxima diretoria iniciar uma campanha eficiente de aproximação de todos os espíritas. Pareceu então de boa política transfundir no aparelho diretor uma razoável porção de sangue novo, ainda não infectado por sectarismos. Era essa a perspectiva de 1895.

O doutor e professor Júlio César Leal pareceu o candidato mais conveniente para a presidência. Diplomado em direito, professor de humanidades, sabedor de Espiritismo, polemista vigoroso (como provam os artigos enfeixados, em 1896, no livro Padre, Médico e Juiz), era ainda um sincero adepto da homeopatia mediúnica e fazia parte da Assistência. Vinha até pretendendo com Coelho Barbosa (também da Assistência e dono do laboratório que ainda tem seu nome) introduzir no receituário dos médiuns o então "novo" sistema "electro-homeopático" do conde Mattei, complexista italiano que propunha ouso de certos específicos feitos com medicamentos homeopáticos misturados, em vez do sistema clássico de Hahnemann que, por muito difícil, quase nunca era praticado, e só admite unitas remedii et doses minimae. 

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